A velha e temida ratazana de água
.
É
do inglês Robert Browning a mais famosa recriação da história do
Flautista de Hamelin, um conto que cedo ou tarde aparece em nossa
infância. O poema de Browning é brilhante; melhor ainda é o
acontecimento misterioso que jaz por trás dele, talvez um episódio
histórico, talvez uma “lenda urbana” da Idade Média. Teria acontecido no
século XIII ou XIV: o relato colhido pelos Irmãos Grimm fala em 26 de
Junho de 1284, mas o poema de Browning situa o facto em 22 de Julho de
1376.
A
cidade de Hamelin foi vítima de uma praga de ratos. As autoridades não
sabiam mais o que fazer. Surgiu na cidade um sujeito que se apresentou
como caçador-de-ratos (“Rattenfänger”), que era uma profissão informal
muito comum na época.
Tocando numa flauta, atraiu
os ratos da cidade até ao rio, onde todos se afogaram. Ao tentar
receber o pagamento combinado, o Prefeito recusou-se a pagar. Ele pegou a
flauta, tocou outra música e atraiu todas as crianças da cidade,
levando-as até uma montanha próxima, onde uma caverna misteriosa se
abriu para que todas entrassem.
E
nunca mais ninguém teve notícias do Flautista ou das crianças. As
crónicas históricas dizem que o episódio original envolveu apenas as
crianças, e o extermínio dos ratos só foi anexado ao enredo alguns
séculos depois.
A
lenda é uma dessas que crescem por justaposição de novos episódios a um
episódio inicial. Hamelin vive ainda hoje dessa lenda; durante o Verão,
uma peça de teatro é montada ao ar livre para os turistas, todos os
domingos. A cidade é cheia de estátuas, vitrais e monumentos recordando o
Flautista.
Mas
Hamelin não é a única. Brandenburgo conta a história de um tocador de
realejo que levou as crianças da cidade para dentro de uma montanha;
parece ser uma mera transposição de local, e não uma nova lenda.
Outra
lenda diz que na cidade de Erfurt, em 1257, cerca de mil crianças se
agruparam no centro da cidade, cantando e dançando, e partiram assim
estrada fora, até chegarem em Arnstadt, onde foram recolhidas até que
seus pais as trouxessem de volta.
História
parecida com a de Hamelin é contada em Korneuburg, na Áustria, onde as
crianças foram levadas num navio e vendidas como escravos em Constantinopla. Algumas
versões dizem que a montanha onde as crianças sumiram (o monte
Poppenberg) tinha um túnel que ia dar à Transilvânia, e elas passaram o
resto da vida lá.
Episódios
reais (pragas de ratos, a “Cruzada das Crianças”) podem ter servido de
origem para a lenda, mas a sua longevidade deve-se sem dúvida a sua
lição moral nítida (castigo pelo não-pagamento de um acordo), ao cruel
nivelamento entre ratos e crianças, ao poder mágico da música, à imagem
arlequim e enigmática do Flautista (que geralmente é descrito como
vestindo uma roupa de faixas vermelhas e amarelas).
O
final em suspenso, com uma pergunta que não é respondida ao longo dos
séculos (para onde foram as crianças?) garante à lenda um mistério
inesgotável.
.
Não
obstante, nada se sabendo das crianças, alguma coisa poderemos adiantar
sobre ratazanas. Há uns dias, tive uma discussão urbana com uns
fulanos que se divertiam na via pública, pontapeando uma ratazana que
tivera o azar de sair fora de uma sarjeta para apanhar ar. Indignado com
a circunstância, não fui a tempo de evitar que o pobre bicho tivesse
perecido aos ímpetos 'futebolistas' dos energúmenos, que me acharam
parvo porque preocupado com o animal. Eles, pobres 'ratos' humanos,
vingaram naquele minúsculo corpo as suas questões pessoais mal
digeridas, e sentiam-se realizados como se tivessem acabado naquele
instante com a peste bubónica naquela rua!
Comendo
quase de tudo e reproduzindo-se rapidamente [quando não está a comer...
está em acção reprodutora], a ratazana d'água é um dos sobreviventes
mais bem sucedidos no mundo e uma das maiores pragas. Vive facilmente na
maioria dos ambientes, alimentando-se de restos e alimentos deitados
fora e especializou-se em doenças, lixos e danos, tanto na cidade,
pequena aldeia ou quinta isolada, nunca vive muito longe das pessoas.
Apesar
de recearem o humano, as ratazanas são criaturas sociáveis e vivem em
grupos ruidosos.Quem já não ouviu histórias de ratos correios entre
presidiários de cárceres?Durante o dia permanecem debaixo da terra,
construindo os seus ninhos em túneis, esgotos, condutas, armazéns ou
adegas. Onde quer que a terra seja macia escavam túneis interligados
onde constroem câmaras que usam como ninhos. Mais activas durante a
noite as ratazanas abandonam os ninhos para procurar alimento. Lutam por
comida e direitos de acasalamento quando o espaço é limitado.
As
ratazanas d'água têm hábitos destrutivos e são uma das maiores pragas
mamíferas de todos os tempos. Não só destroem armazenamentos de
alimentos e cereais, como fazem buracos em paredes, tubos e latões e
mordem fios eléctricos podendo provocar incêndios.
A
sua elevada taxa de reprodução também não ajuda. Só nos Estados Unidos
cerca de 175 milhões de ratazanas provocam milhares de milhões de
dólares de prejuízos anualmente.
Um prejuízo talvez menor do que as guerras que o rato do Tio Sam promove!
Os
humanos nem sempre se protegem, é que as pilhas de lixo são verdadeiras
iguarias para as ratazanas. Não só destrutivas, albergam bactérias e
vírus que podem ser letais para os humanos. Também transportam pulgas
que podem espalhar doenças graves como a peste bubónica e a febre
tifóide.
Há
poucos alimentos que uma ratazana d'água não seja capaz de comer. Tal
como os cereais, carne, insectos e vegetais, também mordisca sabão e
papel, e até é capaz de morder madeira e fio para conseguir chegar a
recompensas mais apetitosas.
Reproduzir-se
e alimentar-se são actividades que consomem muita energia, por isso as
ratazanas têm um apetite insaciável. São capazes de consumir um terço do
seu peso corporal em apenas 24 horas.
Reproduzindo-se
rápida e furiosamente, uma única fêmea produz mais de 250 crias por
ano. Três semanas depois de acasalar a fêmea dá à luz uma ninhada de
bebés! Algumas horas depois, volta a acasalar!
As
crias são desmamadas ao fim de três semanas - altura em que a ninhada
seguinte está pronta para nascer. Embora seja frequente os machos
lutarem uns com os outros pelo direito de acasalar.
A
ratazana d'água deverá ter origem no norte da China. Ao longo de
séculos esta criatura foi-se propagando por todo o mundo, inicialmente
apanhando boleia em navios mercantes e, até companhia dos nossos
navegadores antepassados dos descobrimentos marítimos.
Para além de terem descoberto novos mundos, também descobriram novos seres e, trouxeram-nos clandestinamente a bordo até nós!
Mas...
que não seja por isso, que qualquer "fadista" lisboeta se ache no
direito de esmagar a pontapé os descendentes da rataria da nossa
História!
Sem comentários:
Enviar um comentário