“Escravos de Portugal” reúne histórias de escravos. Portugal é pioneiro na abolição da escravatura, mas ela só acabaria, de facto, muito depois de 1761, diz o historiador Arlindo Manuel Caldeira.
Já
Portugal era há muito uma república quando morreu, em Lisboa, a última
escrava do império. Foi nos anos 30 do século passado. Os jornais da
época diziam que teria 120 anos. Era muito conhecida no Bairro Alto,
onde vendia amendoins. Tinha sido escrava até 1869, data em que foi
publicado o decreto que abolia a escravatura em todo o território
português.
Portugal foi o primeiro estado do mundo a fazer comércio global de
escravos vindos de África. Entre 1450 e 1900, terá traficado cerca de 11
milhões de pessoas. Apesar da mitologia histórica nacional gostar de
exibir o galardão de primeiro país do mundo a abolir a escravatura, o
decreto publicado em 1761 pelo Marquês de Pombal não acabou, de facto,
com os escravos.
A história da escravatura no império português só começou a ser estudada a sério depois do 25 de Abril.
Segundo o historiador Arlindo Manuel Caldeira, autor de “Escravos em
Portugal - Das Origens ao Século XIX”, editado pela Esfera dos
Livros, “o facto de termos vivido durante muito tempo sob um regime
autoritário que se baseava num esforço de propaganda marginalizou estes
aspectos e tornou-os muito difíceis de abordar.
Não havia teses nas
universidades e as que existiam tinham quase sempre efeitos laterais de
propaganda – serviam mais para negar a realidade do que para a tentar
compreender.”
Olhar para a realidade da escravatura do ponto das pessoas foi o
objectivo do estudo agora publicado por este historiador. “Escravos em
Portugal” reúne histórias de vítimas da escravatura. Entre elas estão as
de Lourenço, marcado na testa pelo seu senhor com um ferro em brasa; a
de João, que tinha ao pescoço uma argola de ferro com o nome do seu
dono; e a de Florinda, chamada à Inquisição por recorrer a feitiços na
esperança de abrandar as iras da sua ama.
“O
escravo é normalmente apresentado como uma peça, um objecto. Eu quis
apresentá-los como pessoas, seres vivos, o que não é fácil porque nem
sempre as fontes que referem a escravatura têm este cuidado com as
pessoas. Pelo contrário”.
GRÁCIA, CONDENADA PELO SEU PRÓPRIO ASSASSINATO
A história passa-se no século XVII, em Évora. Grácia, escrava
pertencente a um despenseiro do Santo Ofício, era uma mulher fraca e,
provavelmente, com problemas de saúde. Certo dia, o dono manda-a levar
uns cestos de queijos a um almocreve que vinha para Lisboa. Grácia não
aguenta o peso dos cestos, deixando-os cair.
Como castigo, o despenseiro
espanca-a com grande violência. A mulher regressa a casa, gritando
"morro, morro". Acaba mesmo por morrer. A Inquisição decide, então,
abrir um processo para justificar a morte, que acaba provando que a
culpada era… a própria escrava.
O padre encarregue do processo ainda
lamenta não ter chegado mais cedo ao local do crime. "Conheço muito bem
as manhas dos escravos” – diz ele nos autos – “eles fecham a boca para
deixarem de respirar e morrerem. Se tivesse chegado mais cedo,
chegava-lhe fogo à boca, ela era obrigada a respirar e não morria.
Para encontrar estas histórias de escravos, Arlindo Manuel Caldeira
recorreu sobretudo aos processos judiciais. “ Os que têm mais informação
são os processos da Inquisição, onde as perguntas são muito detalhadas e
muito dirigidas ao quotidiano, o que os torna particularmente ricos”.
A escravatura não foi proibida em 1761
“Escravos em Portugal” vai desde as origens da escravatura até ao século XIX.
“Na verdade, em 1761, a escravatura não foi proibida, o que foi
proibido foi a entrada de novos escravos. Isso não se traduziu no fim da
escravatura, uma vez que, além dos escravos já existentes, havia também
os que nasciam de mãe escrava e por isso continuavam escravos. Em 1763,
o Marquês de Pombal aprovou uma nova lei, a lei do ventre livre, que
determinava que os filhos de escravos passavam a ser homens livres e que
todos os escravos cuja bisavó já era escrava podiam ser libertados.
Teoricamente, restava apenas uma geração de escravidão, mas isso não
aconteceu por razões fraudulentas: a entrada ilegal de escravos vindos
das colónias.”
Com a independência com o Brasil, em 1822, regressam a Portugal
muitos portugueses que trouxeram os escravos como um dos seus aforros.
Perante a lei, à chegada a Portugal deviam tornar-se livres, mas o
rei concedeu aos seus donos um privilégio especial para os poderem
manter.
Para Arlindo Caldeira, “a precocidade da decisão do Marquês tem sido
muitas vezes usada como propaganda porque se partia apenas da realidade
europeia, quando o que estava em causa era a abolição nas colónias”.
Mesmo assim, o historiador reconhece méritos ao primeiro-ministro de
D. José I. “O Marquês era um ser muito complexo. Era um mercantilista,
mas também um iluminista. Foi ele, por exemplo, que acabou com o
estatuto do cristão-novo. Ele via que o escravo era um ser marginalizado
e procurou integrá-lo na sociedade. Na Europa, o Marquês é um
precursor. Portugal é um dos primeiros a abolir a entrada de escravos na
Europa, mas também não podemos esquecer que somos quase dos últimos a
abolir a escravatura nos territórios coloniais.”
Indemnizações?
Curiosamente, esta realidade não dá origem a grandes movimentos abolicionistas – os que surgem, surgem bastante tarde.
JOÃO DE SÁ, DE ESCRAVO A CAVALEIRO
O caso mais conhecido de ascensão social de um escravo aconteceu com
um homem chamado João de Sá, que viveu na corte de D. João III. João de
Sá tinha trabalhado nas cavalariças de um nobre próximo do rei e foi o
seu dono que o recomendou para a corte.
Como era muito “gracioso”, isto
é, tinha um grande sentido de humor, tornou-se muito apreciado pelo rei
que não só lhe deu alforria como também o hábito da Ordem Militar de
Santiago, uma distinção bastante rara. É o único escravo nesta situação,
uma situação realmente excepcional.
“Quando se começa a discutir – sobretudo por pressão inglesa – a
restrição ao tráfego nas colónias, isso provoca grande resistência em
Portugal.
Só muito tarde é que surge uma corrente favorável à abolição
da escravatura, contra os interesses instalados nas classes dirigentes, e
a primeira medida a proibir a escravatura em todos os territórios sob
administração portuguesa só é aprovada em 1869. Em Portugal continental
já quase não havia escravos, mas nas colónias havia muitos e essa
realidade manteve-se de forma encapotada como trabalho forçado, que é
quase a mesma coisa, pelo século XX fora.”
A constatação desta realidade tem alimentado uma corrente que defende
que os países africanos de onde era oriunda a maioria dos escravos
deviam ser indemnizados.
Arlindo Caldeira discorda. “Não vejo nem fundamento nem viabilidade.
Vitorino Magalhães Godinho dizia que a culpa não é hereditária. Mesmo o
pedido de desculpas só se compreende do ponto de vista político. No caso
de indemnização, como se iria calcular o valor de uma vida humana e
quem devia receber a indemnização? A nossa obrigação é fazer tudo para
evitar que se repitam os erros do passado”, argumenta.
“Indiferença” a um crime
“Mais do que o crime é si, o que é grave é a indiferença com que se encaram situações que estão muito próximas da escravidão”, critica.
Apesar de parecer uma realidade longínqua, a escravatura continua a
existir. Em Portugal, entre 2014 e 2015, o Observatório do Tráfico de
Seres Humanos, do Ministério da Administração Interna, sinalizou 193
presumíveis escravos e deu conta de 40 condenações de traficantes.
A
organização não-governamental Walk Free Foundation calculava que, em
2016, viviam em todo o mundo 46 milhões de pessoas em regime de
escravidão.
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